segunda-feira, 18 de junho de 2007

António Feliciano de Castilho 1







A biblioteca possui um exemplar de uma edição de 1906 deste livro, a qual, aparentemente, não está referenciada no catálogo on-line da Biblioteca Nacional.


O especial interesse que suscita em nós justifica-se pelo facto de a acção da narrativa se desenrolar em locais da nossa região: na Bairrada e no Buçaco.



Publicamos um pequeno ensaio de uma professora da escola, membro da equipa da biblioteca.




SOBRE MIL E UM MISTÉRIOS

Centrado em Aguim, onde Castilho tinha raízes familiares, mas com referências a muitas outras localidades bairradinas, Peneireiro, Mealhada, Tamengos, Luso, Águeda, entre outras, este romance de Castilho recria a vida na Bairrada nos meados do século XIX.
Trata-se de uma obra inacabada, cujos primeiros vinte capítulos foram publicados em 1845. Só postumamente foram dados à estampa mais dez capítulos e um fragmento de um manuscrito intitulado O Frade, encontrado como continuação do romance e introduzido por uma explicação prévia dos editores. Embora este fragmento acrescente umas dezenas de páginas à acção do romance, não lhe dá o desfecho tão desejado já que termina a meio de uma descrição da porta de Almedina em Coimbra. O romance, assim aumentado, integrou a edição das Obras Completas de António Feliciano de Castilho em 1907, com os tomos 52 e 53.
Em 1938 a Editora Civilização do Porto reedita esta obra em apenas um volume, não deixando de incluir o fragmento do manuscrito e informando os leitores que este teria ficado na posse do secretário de Castilho. Só em 1997 surge uma nova edição de Mil e Um Mistérios, desta vez por iniciativa do escritor bairradino Arsénio Mota, integrada na colecção Textos Literários da Câmara Municipal de Águeda. Não inclui nem faz qualquer referência ao fragmento. É interessante notar que, no prefácio a esta edição, valioso texto para enquadramento da obra, Arsénio Mota afirma não conhecer qualquer outra edição entre 1907 e 1997, considerando a da Câmara Municipal de Águeda como a segunda que inclui as duas partes. Parece desconhecer, portanto, a edição de 1938 da Editora Civilização.
Se este romance não tivesse mais nenhum mérito – e tem certamente muitos, pela frescura e graça das personagens e respectivas peripécias e pelo que nos permite reconstituir do que era a vida do povo bairradino naquela época, para além de ser mais um exemplo da mestria com que Castilho dominava a prosa em língua portuguesa – ele devia merecer a atenção dos bairradinos por conter a que talvez seja a mais bela descrição da Mata do Buçaco, incluída no capítulo XXX, a que Castilho dá o nome de O Ermo.
Começa por descrever o património natural, enumerando e descrevendo as espécies arbóreas mais pujantes, numa profusão de nomes, de adjectivos e de verbos que pintam com minúcia ao leitor uma bela tela de formas e de cambiantes de verde. As árvores enchem-se de vida: elas dançam, abraçam-se, correm, vestem-se, calçam-se… Há alcatifas de veludo vegetal, um pórtico com cortinas verdes bordadas, um lago de musgo, uma gruta de folhagem, entre outras maravilhas da natureza indomada. Passa à descrição do património construído, referindo-se às ruas largas, às ermidinhas agora desertas, às imagens abandonadas, para depois se deter no velho convento onde tudo é silêncio e solidão. Já não há presença humana mas ela é evocada através dos lugares que ficaram vazios com a saída dos Carmelitas Descalços. Finalmente todo este cenário poético, marcadamente romântico, recebe a presença do homem, o rústico João, herói escolhido por Castilho para protagonizar o seu romance bairradino, e com ele retoma o fio da narrativa até ao final do capítulo, que é o último na edição mais recente.
Tratando-se de um escritor cego desde tenra idade, surge a inevitável pergunta: que olhos terão descrito a Castilho aquele cenário?
É, sem dúvida, um belo trecho de prosa poética que merece maior divulgação.
Aqui o reproduzimos.


Clara Andrade

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